Real (X) Imaginário: A fase da sucessão.

(Vitória de Samotrácia: escultura que representa a deusa Nice, 220/190a.c)

Discutir a diferença entre o real e o imaginário é algo que pressupõe a confirmação de uma maniqueismo filosófico, com esses conceitos postos em polos, não necessariamente antagônicos, mas sim distintos. Pode-se pensar que o real e o imaginário de alguma forma sempre estiveram em relação, mas René Barbier afirma que isso vai se estabelecer após os pré-socráticos¹, por exemplo, com a filosofia de platão onde há uma divisão entre o mundo inteligível e o sensível. O surgimento dessa dicotomia é o marco para o que o autor vai chamar de Fase da Sucessão que pelas palavras do autor: caracteriza-se pela atualização do pensamento racional e a potencialização da função imaginante do ser humano. 

Anteriormente a realidade era tratada em sua totalidade. A experiência com o mundo fluía de forma que o real e o sobrenatural estavam imbricados. O próprio surgimento da filosofia grega se deu com o crescente interesse no racionalismo e a distanciação do pensamento mitológico como base da intelectualidade. Os filósofos pré socráticos estavam interessados em encontrar a substância que explicasse em sua totalidade o que são as coisas, qual é a origem.

Essa pergunta foi a mobilizadora da formação de algumas escolas do pensamento pré-socrático. Como a escola Jônica formada por Tales de Mileto, este afirmava que a origem de todas coisas era a água. Seus sucessores respondiam a mesma pergunta com substância diferentes: Anaximenes, o ar; Anaximandro, uma substância etérea e infinita chamada apeíron; Heráclito, o devir que significava a própria mudança, a impermanência; Empédocles, os quatro elementos. Houve também a escola Pitagórica que tratava a essência das coisas como algo não material e sim ideal: o número. Outra escola era a Eleática que tratava a fonte de tudo como eterna e imutável. Um de seus expoentes foi Xenófenes que afirmava que as coisas giravam ao redor de Deus, do Uno. 

Para o pensamento pré-socrático, então, não era uma questão entender a diferença entre o real e o imaginário. Suas teorias transitavam por questões que hoje estariam a cargo do imaginário e outras que estariam a cargo do real. Para responder a pergunta motivadora desse filósofos (Qual é a substância primeira? ) todo conhecimento, tanto oriundo da mitologia, quanto da racionalidade insurgente era utilizado. Há uma frase atribuída a Tales de Mileto que exemplifica bem isso: tudo está pleno de deuses. Sua teoria apontava que todas as coisas surgiram da água e que a partir disso foram sendo aperfeiçoadas até tudo existir. Seu pensamento de alguma forma relaciona-se bem com a teoria darwinista moderna, mas também conecta-se diretamente à um pensamento mágico presente em seu período. 

O modelo filosófico grego surge pautado no exercício da razão, de alguma forma “superando” o pensando mitológico anterior, o ressignificando sob a forma da alegoria. Platão foi um filósofo que utilizou bastante da mitologia para construir e embasar seu pensamento, um trabalho clássico referente a isso é o Banquete, obra que narra um debate sobre o que seria o amor(eros). É visto nessa apropriação o uso do conteúdos oriundos do imaginário para a construção da filosofia clássica. No entanto a parte do imaginário que afirma o sobrenatural foi por um certo período condenado em Atenas, como escreve Barbier citando (Dodds, 1977, p.198):  Por volta de 432 a.C, em Atenas, a recusa em se crer no sobrenatural e o fato de se ensinar astronomia tornaram-se delitos e assim permaneceram por cerca de trinta anos. 

O que aconteceu na fase da sucessão foi uma divisão e uma apropriação parcial do Imaginário por alguns pensadores. Alguns seguindo por uma ordem transcendente, outros por uma ordem mais materialista. Por exemplo os filósofos gregos se utilizaram da função imaginante para construir e elaborar seus pensamentos e assim se sucedeu com a atualização do pensamento filosófico posterior. A gnose do século II e consequentemente  a alquimia também se apropriaram do imaginário. Essas afirmavam uma possibilidade de transcendência a partir do processo de integração com imagens e símbolos. Um livro interessante sobre esse assunto é o Da Alquimia à Química de Ana Maria Goldfarb que vai narrar o processo de transição de uma estrutura de pensamento Mágico Vitalista presente na alquimia para uma estrutura Mecanicista presente na química moderna. Essa divisão Mágico Vitalista X Mecanicista se esboçou a partir da filosofia clássica pós-socrática. Filósofos como Aristóteles influenciaram tanto futuros pressupostos Mecanicistas quanto Mágicos. Esse processo conflui com a fase da sucessão do imaginário apontada por René Barbier. Nela o imaginário surge a partir de uma separação que põe em opostos o transcendente e o material, o que contraria a máxima pré-socrática de tales “tudo está pleno de deuses”.

Na fase da sucessão o pensamento racional passa a se estabelecer e a imaginação é percebida como um campo aberto/obscuro situado entre um estado de demonização cristã e uma valorização mística. Os dois pólos se relacionavam às vezes de forma ambígua. Mas foi em descartes que o ideal de imaginário (função imaginante) foi posto em um sublugar e a função racional fez alarde sobre a máxima “penso logo existo”. O curioso é que um dos momentos muito importantes para vida de descartes foi uma revelação por meio de um sonho que o ajudou a construir sua teoria. 

Em resumo na fase da sucessão definiu o lugar do imaginário. O conceito surgiu transitando entre vários usos. Polêmico, ele se fez presente de forma constante no pensamento. Ao longo dos séculos até o século 16 as práticas imaginantes foram desvalorizadas, consideradas pecado pela a igreja e delírio pelo intelectualismo protagonizado por descartes. Como resposta a essa desvalorização o imaginário sofrerá uma mudança adentrando em uma nova fase, a fase da subversão em que o imaginário será encarado positivamente. Será o verdadeiro caminho da libertação. A fase da subversão será o tema para a próxima publicação. 

¹ A argumentação de Barbier segue por um viés ocidentalista. Não abarca com exatidão as fases do imaginário, já que se fixa no continente europeu. Ainda pretendo mais afrente me aprofundar nos demais olhares sobre o imaginário.

Referências 

Barbier, R. (1994). Sobre o imaginário. Em aberto, 14(61).

Goldfarb, A. M. A. (1988). Da alquimia à química: um estudo sobre a passagem do pensamento mágico-vitalista ao mecanicismo. Nova Stella, Editora da Universidade de São Paulo.

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